08/01/2014 23:04

Por Lucas Ildefonso

Não existe uma perfeição, pelo menos não para o homem, ele tem a fome, ele não será saciado. Ele tem o amor, a raiva, a esperança, a dor, o perdão, a paixão e todo o ouro não consegue preencher o vazio, que quer mais o homem? Pois tudo lhe é dado ou ao seu alcance está. Tudo tem e tudo quer. É na noite em que as sombras, a penumbra e a escuridão, primas ou irmãs distorcidas, abrangem quase o mesmo sentido, a mesma cor e o mesmo efeito devastador. É Nelas em que se liberta, faz o quer, tem liberdade, assim é também o mau que reina escondido, buscando a sua própria liberdade. Em sua busca ele mente, fingi, ama, odeia, distorce. Que mais ele quer? Talvez consumir sua própria alma.”

 

 

Não me recordo de uma entrada tão dramática e desesperada em minha vida do que a que presenciei naquele estranho inverno de 1979. Nem mesmo o forte barulho do bater dos galhos da velha arvore no quintal pode abafar o estrondo da entrada de meu primo Eduardo em meu quarto, escancarando bruscamente a porta, que chacoalhou repetidas vezes produzindo um som penetrante e ameaçador, que me fez saltar da cama.

Ignorando meu espanto Eduardo andou dois ou três passos em minha direção, parando em seguida, próximo a mesa sem falar nada. Observei em seu rosto uma expressão lívida e apática, dando-lhe uma expressão cadavérica. Os músculos de sua face estavam tão fortemente contraídos que era possível diferencia-los desenhados perfeitamente em seu rosto. Os seus olhos negros esbugalhados, saltavam das órbitas, inspirando um terror profundo, derramando um medo cáustico em meu coração, que palpitava ferozmente.

Suas pernas tremiam timidamente apoiadas umas nas outras, em conjunto com a mão direita que pendia inutilmente em seu tronco enrijecido. Bastante assustado com o seu estado tentei quebrar o clima denso e desconfortante que pairava sobre nós:

- O que foi? Aconteceu alguma coisa? – Perguntei rapidamente, com um pouco de rispidez.

Sem demonstrar interesse em responder, ele aproximou-se de mim, com a mesma expressão assustadora, e sem tirar os olhos dos meus, puxou a cadeira da escrivaninha, sentou-se e imediatamente fincou o seu olhar em mim como ganchos que rasgavam a minha tranquilidade, continuando a me encarar, com os mesmos olhos negros e dilatados. Sem entender o que estava acontecendo, e interpretando seu estado de choque como se fosse alguma brincadeira, querendo assustar-me, voltei à atenção ao livro que estava lendo, ignorando-o completamente.

Enquanto lia, percebi claramente que ele mantinha a sua expressão insolúvel, que aos poucos tomava também traços de certo rigor que imperava por entre o silêncio desafiador que nos circundava. Metido em meus pensamentos, tentei retomar novamente a atenção ao livro; Porém alguma coisa lá no fundo de minha alma me avisava que havia algo de muito estranho. Em seu silêncio, pude refletir e tentar imaginar o que realmente ocorria por trás do véu ameaçador de seu semblante. Acabei entrando em seu jogo, não ousei falar uma palavra sequer ou realizar qualquer movimento que lhe desse alguma satisfação em sua brincadeira.

Um fato apareceu bruscamente em minha mente. Durante o pouco tempo que convivi com Eduardo nunca notei a sua tendência a realizar trotes com as pessoas e nem tão pouco ele tinha intimidade para entrar em meu quarto sem bater na porta. Para dizer a verdade eu achava que ele nutria um profundo medo por mim, ou pelo menos era isso em que acreditava. Não tínhamos um bom relacionamento, ele sempre foi tímido, calado, vivia pelos cantos, conversava pouco, o que apoiava a minha teoria. Analisei a circunstância e por mais que eu a tentasse entender, eu não a compreendia. Creio que ficamos naquele jogo de quem fala primeiro por uns quinze minutos. Com o passar do tempo comecei a me irritar. Pude senti meu coração palpitar, a minha cabeça esquentar, minha respiração começou a ofegar, com grandes respiradas profundas que se comparava a de um touro prestes a atacar. Qual seria o motivo para tudo aquilo?

Para não explodir de raiva e enfrentá-lo, decide dar a ele a chance de explicar e lhe fiz outra pergunta, dessa vez mais direta com a intenção de descobrir o que estava ocorrendo de verdade, desmascará-lo diante de sua própria brincadeira infantil e inútil. Sempre fiz questão da verdade, mas isso era controlável naquela situação?

 

- Se aconteceu alguma coisa é só me contar. Você fez algo de errado? – Perguntei com a paciência que restava e que então se esvaía.

Ele não respondeu.

A raiva intensificou-se e querendo evitar uma briga desnecessária, sai do quarto. Tamanha foi à minha frustração com o que estava acontecendo que acabei por desistir de ler o livro, indo então assistir televisão. Entretanto o momento em que a liguei ela parecia muda. Parecia que o destino conspirava contra mim – se eu acreditasse em destino - observei apenas os perfis das personagens, do que certamente seria um filme de Velho Oeste. Não adiantava fazer mais nada. Minha intuição me dizia para voltar para o quarto e resolver de uma vez o problema. Rapidamente um som agudo que vinha do primeiro andar chamou minha atenção. E ele continuou.

A chuva que até então estava fraca, reduzida a chuviscos, crescera bruscamente, os ventos eram fortes e do lado de fora os galhos das árvores dançavam. Bailarinos da noite que emitiam sons hediondos, sons furtivos. Dando a noite chuvosa uma impressão mais sombria.

Naquela noite meus tios haviam saído para jantar. Deixando comigo a tarefa de cuidar de seu único filho, pois sendo eu mais velho (na época tinha 21 anos) tinha mais responsabilidade. Acreditavam como todos que a idade é proporcional a maturidade, o que às vezes não acontece. Praticamente todo o final de semana eles saiam. Fiquei de certa forma habituado a cuidar de meu primo e do meu irmão, ambos com seus quinze anos e suas caras brilhantes com o viço da puberdade. Meu primo, meu irmão, e eu morávamos juntos, pois infelizmente, o acaso resolvera me provar ou fazer-me forte, minha família havia morrido em um acidente de carro, em meio a uma viagem em que fazíamos: eu, meu pai e minha mãe. Três anos atrás. Os ecos de meus passado batem a porta de minha alma. Já me misturo a ele e posso, até mesmo senti os cheiros e os sabores. A caneta e o papel tornaram-se minha vida; minhas mãos, o destino cego que me feriu.

Todos os dias durante a minha recuperação, eu sonhava com meus pais e com a minha vida antes do ocorrido. Ainda agora vem em mim a lembrança deles, invoco-as agora, devo lembrar cada detalhe: minha mãe era uma linda senhora de rosto afável, que raramente se irritava e quando o fazia era de um modo tão forçado que não empunhava o medo que meu pai era bom em demonstrar... O que era ele? Bem, meu pai era um senhor alto de nariz aquilino e cara comprida, nunca nos demos bem, vivíamos discutindo: sobre as minhas notas, minhas atitudes e até sobre as minhas namoradas. A convivência, como já é possível imaginar, não era o forte de nossa família, mesmo assim, eu sentia a falta daqueles defeitos, que por mais estranhos fossem eram a nossa marca registrada: a rabugice de meu pai, a paciência de minha mãe, e das discussões. A guerra era a nossa paz. E a calmaria um mundo estranho, que raramente ousávamos em penetrar.

A perda não afetara apenas a mim, meu irmão foi o que mais sofreu, e o que melhor sabia fingir estar bem, enquanto que eu era o irmão mais velho, e que devia passar confiança dando-lhe apoio necessário para passar pela dificuldade, estava longe de ser um porto seguro. Era mais uma tempestade destruidora. Só a morte é capaz de mostrar intimamente a instabilidade das coisas do mundo.

 Eu fazia-me de forte, mesmo me sentido fraco e impotente.

A única razão de eu ter escapado do acidente mortal, foi por causa de minha insistência em comprar comida num posto de gasolina. Quando entrei na loja ouvi um zumbido que ecoou atrás de mim rapidamente. Quando dei por minha situação, eu estava debaixo de uma pilha de escombros e a quinze metros de onde eu estava, estava o carro de nossa família; existia fumaça para todo o lado que minha vista alcançava. Fui resgatado vivo, com algumas escoriações e queimaduras. Nada demais. Desde dia do acidente, morei com os meus tios.

Tal experiência me traumatizou, demorei meses para sair da imensa depressão em que havia afundado. O abismo fica maior quando dentro dele se está, faz-se parte dele.  Naturalmente nunca perdoei o homem que causara o acidente. Ainda posso me lembrar de seu choro perante o juiz, e de sua tentativa medíocre de convencer o júri de sua inocência falsa. Que não me convenceram.

 Desconheço até hoje o motivo pelo qual, não o ataquei ali mesmo no tribunal. De não ter arrancado sua vida com as minhas mãos e o mandado para o maldito abismo infernal que merecia. Talvez por causa da grande quantidade de pessoas presentes ou pela forte ajuda de minha família.

- Eu estava dirigindo o meu caminhão, transportando um lote de frutas, quando... Bem... Eu me abaixei para pegar o cigarro que caiu no chão. Tenho certeza de que não demorei dois segundos... - Disse o motorista.

- Dois segundos que custou a vida de duas pessoas inocentes, a destruição de um posto de gasolina e deixar órfão dois garotos... – Completou o promotor.

O resto o leitor já deve imaginar, o caminhão atingiu o carro de meus pais que estava abastecendo, como resultado à bomba explodiu e arrastou tudo com a enorme explosão. O motorista foi declarado culpado; Pegou apenas sete anos de prisão.

Não há como contrabalancear a morte, enquanto ainda pertence-se a vida. Não há preço para ela, todo seu valor é perdido quando ela começa. Toda compensação é nula. Segue-se, caminha para frente. É o que a natureza humana faz, mas eu não, era tragado cada vez mais para um lado escuro medonho, me escondia nele e da trevas por muito tempo fiz meu lar.

Jurei para mim mesmo que meus pais teriam vingança. Com o passar do tempo minha promessa ficou somente nas palavras, jamais a cumpri, mesmo assim fantasiei várias vezes. Sonhava comigo assassinando o culpado de tudo, por diversas maneiras - Com o maior sofrimento possível. A morte não era apenas o que merecia, ver a vida afastando-se e beijar a morte era o necessário.

A mente humana é frágil, logo esquece, logo perdoa. Quando há em que seguir e encontrei em meus tios a coragem e a força para enfrentar a vida pelo mundo real e abandonei meus infindáveis planos de vingança. Mesmo que esse sentimento inflamasse dentro de mim como se fosse uma chama eterna que consumia o meu ódio como combustível. A dura dor ingênua, ardilosa e persuasiva da vingança não perpetuada, era minha companheira. Os sonhos foram às fontes suaves dos meus desejos, os pesadelos foram à fria marca dos meus medos, enquanto que a realidade era a árdua veemência da sobrevivência imposta pela vida.

Neste período eu vivi em equilíbrio, em uma corda bamba mordaz, entre o amor e o mais puro e involuntário sentimento: A vingança. Pode até parecer incomum ou até mesmo insensato, mas a vingança tomou meu espírito de uma maneira quase impossível de explicar. Mesmo assim o faço: Sugou a minha alma num só golpe de concentração, retirou-me todo o prazer de uma vida normal, acanhou-me diante do prazer duplo do perdão, e ela é tão forte e decidida que estilhaça tudo, volto a repetir tudo que estiver a sua frente, numa frenética abominação descomunal que digere todo o ser de quem a tem, toda a alma por mais tardia que fosse mais empoeirada e tranqüila que estivesse, mesmo que sofra ela está lá. Pronta para finalizar. E não apenas finalizar, porém terminar com um êxito de uma grande batalha; batalha esta que invade o corpo e corrompe a alma mais digna.

Foi nessa mesma época que eu e meu irmão morávamos com meus tios. No entanto não os via como uma vaga substituída de meus pais, mas os enxergava como uma espécie de passagem para a realidade. Uma libertação de meu espírito.

Deixando a estória trágica de minha vida de lado, irei retornar a narrativa que prenunciei nas primeiras linhas desse escrito, maldita hipocrisia:

Continuei assistindo televisão até por volta das onze e meia, quando ainda preocupado com Eduardo, decidi retornar ao quarto para ver se ele dormia. Fiquei estupefato ao ver que a sua cama não havia sido desfeita. Corri para meu quarto e tive a triste sensação de que ele não estava lá.

Minhas previsões estavam corretas, meu primo não estava lá. Preocupado, desci correndo as escadas para checar se ele estava em outro cômodo do andar de baixo, vasculhei tudo. Não o encontrei. Imaginei a possibilidade de meu irmão o ter acompanhado. A ideia passou pela minha cabeça como se fosse um relâmpago, enquanto que a energia de um trovão migrou para as minhas pernas, que saltavam com imensa ferocidade andar a cima. Para o meu alivio, meu irmão dormia serenamente em sua cama.

Como havia fracassado na busca em casa, decidi procurá-los do lado de fora. Mantive as esperanças de encontrá-lo. Com isso na cabeça, tranquei a casa e comecei a procurá-lo pelas imediações. Sai descontrolado pela rua. Por mais estanho que possa parecer o relato que segue, este aconteceu. Eu me recordo daquela bela noite com uma precisão quase subjetiva: A lua estava cheia, e não apenas cheia, mas igualmente alva, brilhante e consoladora; entretanto as estrelas eram raras e descompostas, mantinham um brilho opaco em um fundo negro introspectivo, a brisa fria, incólume da noite era um mistério maior do que a escuridão que me circundava.

As ruas naquele horário, não eram uma opção confortável de passeio. Elas estavam vazias, com a exceção de um ou dois mendigos que caminhavam em direção aos seus abrigos.

Andei por quase todo o bairro.

Em meu desespero, veio repentinamente em mim uma única e clara explicação: “Talvez ele tenha saído ou pior, pode ter convencido meu irmão disso. E se eles saíram de casa, com certeza estão encrencados na minha mão, a rua não é lugar para eles, não a essa hora, não dessa maneira.” - Pensava.

Não quis acreditar naquela hipótese, além do mais o quê um garoto de quinze anos faria na rua a essa hora da noite? Obtive a resposta, mas foi tão sombria que abandonei de soslaio aquela conjectura inválida, que me pareceu absurda ao passo que minha imaginação apresentava traços de uma estória sombria que poderia acontecer.

E a noite tão assombrosa quanto minha perguntar, lançou mais uma vez seu vento frio em meus ouvidos.

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